Quinze anos em Lugo

Conferencia que pronunciou Ricardo Carballo Calero no Centro Lugo de Buenos Aires o 25 de xullo de 1974, que vén ser un canto a Lugo e as súas xentes, á vez que expresión perfecta da súa relación coa cidade, con destacados lucenses, e a súa vida no Colexio Fingoi ao que dedicou un período fundamental da súa existencia, especial en canto a creación e investigación literaria se refire, e á súa reafirmación persoal e intelectual e proxección a todo o mundo galego.

 

Meus paisanos lugueses, minhas senhoras, meus senhores:

Ao falar neste Centro, bem podo considerar-me dentro do meu âmbito familiar. Um home coma mim, que tem consagrado a sua vida ao serviço da cultura galega, especialmente ao estudo da língua e da literatura de Galiza, acha-se em condiçons de considerar-se no seu lugar nativo em calquer ponto de Galiza, e, com certeza, o Centro Lucense de Buenos Aires, ainda que honrosamente ubícado na generosa terra argentina, é tamém espiritualmente terra galega em virtude de um direito ideal de extraterritorialidade que lhe outorga o ordenamento da emoçom. Mas, tenha um nado dentro de Galiza da terra santa ou na Galiza da diáspora, sempre nace um num lugar determinado. O que me correspondeu a mim, nom foi nemgum lugar, nem grande nem pequeno, da província de Lugo; pois arroláromme as mesmas ondas da ria a cuja beira abalárom os berces de Benito Vicetto, Concepción Arenal e, sem dúvida, Fernando Esquio, para nom citar senom nomes de escritores soados, ja que um é tamém, ainda que nom soado, escritor. Contodo, nom só, sem míngua da minha calidade nativa de marinhám, devo considerarme luguês por razom de longa vizinhança, mas porque os meus filhos e os meus netos levam sangue luguês, pois luguês é o sangue da nai daqueles e avoa destes, e porque a metade dos meus filhos e a totalidade dos meus netos fôrom nados em Lugo, e em Lugo vive hoje toda a minha descendência.

Umha parte do meu bacharelato foi realizado no Instituto Geral Técnico de Lugo; ou, para ser mais exacto, Sofrim exame de diversas matérias, como aluno livre, naquel Centro, do cal os locais estavam situados no edifício da Deputaçom Provincial, na rua de Sam Marcos. Muitas vezes depois visitei de moço a capital da província. Em Lugo casei, na igreja de Santiago da Nova, e o crego que abençoou aquela uniom, dom Federico Somoça, era abade de Sam Pedro de Esperela, parróquia em que a noiva nacera. Residente, polos azares da vida, em distintos lugares, na minha mocidade e na minha maturidade, sempre mantivem relaçom estreita com a cidade de Lugo, aginha emparentado com gentes daquelas terras; e em festas e vacaçons costumava passar dias ou semanas de lazer numha casa próxima à porta de Sam Pedro, na rua de Sam Roque, perto da capela da mesma advocaçom.

Criado à beira do mar ártabro, onde os efeitos da Corrente do Golfo adoçam a temperatura, tardei muito em conhecer a neve. Lugo, alta acrópole de claridades e purezas, como lhe chamou Otero Pedraio, surprendia·me polos seus duros invernos, que às vezes registam as temperaturas mínimas entre as capitais peninsulares, acarom de Cuenca ou Sória. Aos meus olhos de neno, as lajes de piçarra que cobriam os teitos dos edifícios, o mesmo os públicos que os privados, o mesmo a igreja catedral —primeira que vim na vida- que as casoupas arrabaldeiras ou campesinas, infundiam à paisage urbana umha vaga tristeza grisalha que contrastava com a vermelha ledice dos telhados da minha terra alapeados pola soalheira. Senhores constipados e reumáticos fardados em samarras guateadas, cregos abufandados, moças de rostos amoratados com as pernas enfundadas em calcetas da lá, povoavam umha cidade onde o gelo e a neve eram umha presença imperante num duro inverno continental de atmosfera mui distinta à húmida, mas lene, do meu porto natal.

De outra banda, filho de umha cidade de forte fisonomia castrense e obreira, o peso eclesiástico, fidalgo e artesao de Lugo, centro de umha economia gadeira e agrícola muito mais natural que a economia burocrática e industrial dos funcionarios e técnicos que rodearam a minha nenez, puxo-me em contacto com realidades da vida galega apenas perceptíveis para um observador infantil nas formas de vida mais estratificadas e convencionais que constituíram o meu primitivo entorno.

Contra a leda e buligueira Corunha, para um ferrolano concreçom mais livre e variegada do seu próprio âmbito cidadao, Lugo resultava um mundo novo, mais enraiganhado no contorno rural. Nom era um porto nem umha fortaleça. As suas abraiantes muralhas, perante as cais os restos de Baterias ou do Parrote resultavam insignificantes, falavam certamente de um passado militar; mas esse passado era remoto, e ja só arqueologicamente presente. Mais preservada da influência forasteira que funcionários militares e colónías veranegas acarretava às vilas marinhás, Lugo aparecia-Se­me como umha capital silenciosamente encravada desde sempre no torrom labrego. Lugo era um mercado, desvanecida a tradiçom romana de campamento militar, mas conservando, nom só, como em nengum outro ponto do antigo Impèrio, o recinto fortificado, senom outros vestígios do traçado Castrense, juntamente com restos arqueológicos —dos cais sem dúvida nos agardam novas descobertas- próprios da capitalidade de um convento jurídico.

Os estratos sociais que se ordenavam na vida da cidade eram os mesmos que constituíam a estrutura social na província, de jeito que a capital oferecia­se aos meus olhos como um núcleo de coordenaçom espontânea das terras que a rodeavam. Ainda polos anos vinte, a aristocracia de sangue, integrada por fidalgos, rara vez titulados, com poder económico baseado na propriedade agrícola, e poder político derivado desse poder économico, dominava a vida da capital em artelhada harmonia com a autoridade dimanante do paço do Bispo. Apelidos como Montenegro, Ntíra, Saavedra, Ulhoa, Gaioso, Pedrosa, de reconhecida avoença, conservavam o prestígio popular antigo, e as corteses relaçons que vinculavam os seus membros e os da cúria eclesiástica com os funcionários mais distinguidos da administraçom provincial -magistrados da Audiência, catedráticos do lnstituto-, de origen foránea, nom erosionavam ainda o poder social que as velhas famílias representavam. Esta jerarquizaçom contrastava com a que me rodeava no meu mundo vernáculo infantil, onde privava, màlia a carência de fortificaçons defensivas do perímetro cidadao -pois a defensa da praça estava projectada sobre a base de um sistema de castelos que controlavam os acessos marítimos-, umha classe dirigente formada, como é natural numha zona de grande importância estratégica, pola oficialidade da numerosa guarniçom, oficialidade entre a que destacava a que rodeava ao Capitám-General do Departamento marítimo.

Assi, Lugo foi para mim a primeira cidade de Galiza que se me apresentou como expressom urbana da nossa terra, como esta seria na sua vida espontânea, independente das instalaçons militares ou das afluências turísticas.

Lugo foi tamém a última cidade de Galiza que me viu polas suas ruas em 1936. De ali partim para Madrid a fazer umhas provas para ingressar no professorado oficial, provas que, interrompidas pola contenda civil, pudem acabar trinta anos depois. Lugo foi tamém a primeira cidade de Galiza que pisei ao meu retorno; mas havia ser em 1950 cando me transformaria por primeira vez em vizinho de Lugo, onde trabalhei arreio no ensino privado durante quinze anos, e onde continuei tendo o meu domicílio até 1968, cando ja era professor do instituto Rosalia de Castro e da Universidade de Santiago. Mas foi umha quinzena longa a que vivim do exercício da docência na cidade de Lugo, como professor e director do Colégio Fingoi.

Fingoi e Magoi som dous lugares das imediaçons da capital, duas aldeias do termo municipal! Hoje estám absorvidas polo alargamento da cidade. O polígono de Fingoí inclui arestora 0 edifício e as dependências do meu Colégio; mas em 1950, cando tal edifício e tais dependências estavam ainda sem rematar, o Campo, a agra de Fingoi, sementada de centeio, os soutos e as carvalheiras, as gesteiras e os pinheirais rodeavam por todas partes os locais dedicados à docência. O Colégio, que levava o nome do seu empraçamento —um acerto do bom gosto do fundador-, estava, pois, encravado numha zona rural, de acordo com a orientacom que animava as suas actividades. Aspirava-se a centrar o ensino no meio galego, a arraigar fortemente a educaçom no ambiente do país. Rejeitava-se toda pedantaria livresca que confundisse a formaçom dos rapazes com a erudiçom infantil, despersonalizada e apátrida. Nom se tratava de educar os alunos como se fossem habitantes de calquer país, como se existisse umha educaçom uniforme para calquer país. Sem pretender introduzir novas teorias, senom aspirando somente a praticar teorias razoáveis, procurávamos, sem míngua de lhes fornecer os conhecimentos hoje necessários para calquer home civilizado, proporcionar aos alunos umha imagem imediata do mundo em que viviam, que lhes permitisse desenvolverem-se com eficaz soltura no seu próprio meio. Mais importante que aprender nos livros e nos mapas os afluentes do Óbi, como se fossem siberianos, ou os do Congo, como se fossem bantus, era levá-los à meseta das Pias para que estudassem sobre o terreno a dispersom das águas e vissem com os seus próprios Olhos como, ao Norte, fluía o Mandeu cara a ria de Betanços; como, ao Leste, as águas do Narla iam empatar com O Minho; de que jeito, ao Sul, a corrente do Furelos procurava a bacia do Ulha; e como, em direcçom ocidental, fluíam cara o mar as ondas do Tambre. As excursons ou viages de estudos por Galiza, realizadas os dias feriados, e precedidas de umha cuidadosa planificaçom, permitiam aos alunos familiarizarem-se com a sua terra. A observaçom da paisage, dos tipos de cultivo, das formas de populaçom, dos monumentos arquitectónicos e das manifestaçons da vida artesá e industrial, aspiravam a proporcionar aos escolares um conhecimento directo da realidade galega, que lhes servisse de base prática para a comprensom das diversas facetas da realidade universal.

Mas o Colégio contava com instalaçons permanentes onde estudar empiricamente nas aulas diárias esse mundo que se visitava nas excursons para comprendê-lo na sua plenitude. No parque acogulavam­se as espécies arbóreas; havia parcelas assinaladas aos distintos alunos, que eles cultivavam, sob a direcçom dos seus mestres. Pitas, parrulos, pombas, coelhos, porcos, enchiam os currais e as granjas. Os alunos, assi, partiam do conhecimento efectivo do mundo rural que os sustentava. Era um esforço que realizávamos para conseguir que cando aqueles alunos, em intercâmbios que organizávamos, saíssem a completar a sua educaçom no estrangeiro, levassem os Chumbos de um arraigo efectivo na realidade do seu país, que lhes permitisse contrastar a experiência que com as suas viages adquiriam. Umha cultura livresca faria deles fora e dentro desvalidos eruditos. Se os rapazes aprendessem a sachar umha leira, a sementar o grao, a trabalhar a torno, a manipular num quadro de electricista, a erguer umha cabana e a criar umha rolada de pitos saídos da incubadora, estariam melhor situados para afrontar a vida real, disporiam de umha concepçom do mundo mais prática e comprensiva Calquer que fosse 0 seu destino profissional, ainda que seguissem o caminho das mais especializadas carreiras universitárias.

O principio da unidade do mundo, e, portanto, da unidade de conhecimento, era fundamental no nosso conceito da educaçom. Havia que cumprir o velho preceito, mil vezes repetido e mil vezes esquecido, de que ensinávamos para a vida, e nom para a escola. E como a vida e umha sendo múltipla, toda a educaçom em Fingoi, orientada a servir à vida, estava organizada sobre a base da coordenaçom dos distintos aspectos do ensino. Tomando como base as ciências da natureza, no seu mais amplo sentido, traçava­se um esquema de trabalho, aprovado em reunions regulares celebradas polo professorado, e os distintos educadores ajeitavam o desenvolvimento das suas explicaçons, na medida do possível, a aquel esquema, a fim de que a concentraçom num foco de interesse das distintas actividades formativas, provocasse o máximo rendimento com o mínimo gasto de energia no alunado.

Certamente, existia o perigo de esnaquizar a metodologia e o plano de cada matéria de conhecimento numha utópica pretensom de unidade científica. Isso seria voltar ao filosofismo enciclopedista do abrente da cultura Ocidental, cando sábio, filósofo e científico eram a mesma cousa. Umha certa aproximaçom à actitude pedagógica derivada dessa concepçom primitiva, estava se calhar ontofilogeneticamente justificada para o grau primário do ensino, organizado basicamente ao redor da direcçom de um só mestre. Este, responsabilizado de um conjunto de alunos, podia praticar as liçons de cousas segundo um método empírico, ajustado ao plano coordenado geral, devolvendo à unidade natural, mediante o estabelecimento das oportunas relaçons, o fragmentário material que a especializaçom ordenadora e Simplificadora lhe suministrava como elemento de comunicaçom do saber. Mas o pluralismo de professorado, necessário, nom só por imperativo legal, Senom tamem por exigência pedagógica no grau médio de ensino, impunha umha realista moderaçom na ingénua e simplista concepçom unitária do elenco educativo. Como tantas vezes ocorre, umha verdade historicamente obscurecida tende a reafirmarse extremando a sua vigência no mundo da realidade em termos que suponhem a confusom total do real com o ideal: a infantil crença de que a estrela polar ou a Cruz do Sul som, nom ja signos astrais que orientam os navegantes, Senom portos de destino em que ham desembarcar os passageiros.

Um candoroso idealismo unitário, como reacçom contra um fragmentarismo caótico, nom deixou de nos apresentar problemas na prática, e o mesmo sucedeu perante o princípio de método que supunha como quantitativa e nom qualitativa a diferença entre os distintos graus do processo formativo. Do mesmo jeito, a inclinaçom especulativa dos mestres de ensino primário —aos cais nas Escolas Normais se lhes fornecera umha doutrina pedagógica-, e a falta de formaçom oficial neste sentido dos licenciados universitários em Letras ou Ciências -educados no conhecimento especial das suas disciplinas, mas nom na arte de transmitir os seus saberes-, nom deixou de engendrar, como no lnstituto Escola, que em parte prefigurara o Colégio Fingoi, desajustes que promovêrom freqüentes plantejamentos de questons de política pedagógica. De outra banda, o primitivo propósito de manter a máxima independência de métodos didáctícos e organizaçom escolar respeito do Estado, tivo de ser rectificada perante a impossibilidade de ajustar tam absoluta autonomia à filosofia da legislaçom, que propugnava um intervencionismo incompativel com o experimentalismo imaginativo que presidiu a criaçom do Centro.

A todos estes problemas fixo-se cara sem dogmatismos intransigentes, e a principal missom, às vezes mui difícil, e, em definitiva, esgotadora, do Director, foi durante os quinze anos longos que regentou o Centro, procurar a viabilidade do mesmo dentro do marco real em que funcionava, sem renunciar aos princípios que constituíram a sua razom de ser.

Como conseqüência inescusável do espírito de referência ao meio em que o Colégio estava encravado, o cultivo dos herdos autóctonos no campo artístico era um feito que dava carácter à nossa actividade. As danças galegas, os instrumentos músicos do nosso país, o teatro em língua galega merecêrom sempre especial atençom. O Director consagrou umha dedicaçom particular ao teatro, e chegámos a ter um grupo de actores de que pudemos estar satisfeitos. Numha época em que a legislaçom excluíra a coeducaçom, conseguimos para Fingoi 0 reconhecimento oficial como Centro experimental, o cal nos permitia educar conjuntamente nenos e nenas. Assi, as actividades artísticas contavam com elementos de um e de outro sexo. Nom só nas festas que Celebravámos no Colégio, senom tamém em saídas fora do nosso recinto, representamos obras, em textos originais ou traduzidos, que, em parte, nunca fôrom objecto de encenaçom nom ja en Colégios da península, senom em calquer local da península mesma. Umha das nossas realizaçons mais entusiasticamente trabalhadas foi a Pimpinela de Castelao. Mas chegamos a representar textos de Herondas, de Plauto, de Courteline, de Baring, de Lope de Rueda, de Lope de Vega. Fixemos mesmo teatro chinês -O círculo de giz- e japonês –Kantán-. Algumhas destas peças -mesmo francesas e latinas- fôrom representadas na língua em que as escrevêrom os seus autores.

Constituida finalmente a educacom primária em regime de escolas de Patronato, dispuxemos de mestres nacionais elegidos por nós, especializados no ensino de acordo com as peculiaridades do ambiente em que iam actuar, como diplomados nos cursos correspondentes organizados pola Inspecçom Provincial com assessoramento e subvençom do próprio Colégio. Menos estabilidade lográmos para o professorado de Ensino Médio, por nom se ter chegado nunca a umha Soluçom paralela à adoptada com os mestres de ensino primário, por causa das dificuldades de ordem administrativa.

Em todos os graus aspirava-se a promover a formaçom do persoal docente, para o cal se proporcionavam bolsas à gente moça devidamente titulada. Por Fingoi passárom licenciados que hoje som catedráticos em diversos liceus do Estado e que connosco fixérom os primeiros ensaios de docência. Alguns som figuras mui destacadas das letras galegas. Lembremos três escritores ben conhecidos.

Bernardino Granha, hoje catedrático em Reus, poeta de nomeada temporá, autor da Profecia do mar, contribuiu ao teatro galego com a sua tragédia naturalista Vinte mil pesos crime inspirada numha novela de Boccaccio, e acaba de dar ao prelo as narrativas de Fins de mundo.

Joše Luis Mêndez Ferrim, outro precoce engenho, que, mui bem dotado para a poesia, na cal se estreou com Voze na névoa, derivou logo cara o relato e a novela breves, em que introduziu novidades técnicas que o conectam com o nouveau roman francês e outras escolas da nova narrativa europeia e americana. Hoje catedrático em Vigo e figura bem conhecida dos galegos de América.

Arcádio Lôpez Casanova, catedrático en Valencia, cultivador da tragedia palliata e poeta de grande habilidade técnica, de grande flexibilidade estilística, vantajosamente julgado, entre outros, polo seu volume de versos Palavra de honor.

Mais próxima seria a lista dos alunos de Fingoi que hoje destacam em diversas actividades intelectuais. Temos mesmo catedráticos de Universidade, como Emílio Valinho del Rio, colega do seu antigo professor na Fonseca compostelana.

Cando depois de trinta anos de ausência do ensino oñcial, pudem ocupar um posto na mesma, e fum chamado a encarregar-me dos cursos de Língua e Literatura galega na Universidade de Santiago, tivem de deixar, paulatinamente, primeiro, o trabalho docente, e, afinal, o meu posto de Conselheiro Delegado do Patronato ou Director Geral do Colégio Fingoi.

Durante todo o tempo que ostentei aquel cargo Sustivem umha relaçom quase diária com o Presidente do Patronato, fundador da instituiçom e grande mecenas da cultura galega, dom Antonio Fernández Lôpez. Quero dedicar-lhe neste momento, aqui no Centro Lucense de Buenos Aires, umha lembrança emocionada.  Em circunstâncias para mim nom doadas, dom Antonio —como familiarmente se lhe chamava na Casa- assessorado por amigos queridos que tamém o eram del, mas sem conhecer­me persoalmente, ofereceu-me a direcçom do Centro que ideara, e a política cultural, pedagógica e administrativa daquela entidade —que em regime de meiopensionado, com um número limitado de praças para alunos, mas con umha complicada organizacom, exigia umha atençom constante de parte do director gerente-, foi traçada decote por el e por mim em incessantes entrevistas. Vivia eu interno no Centro, e dom Antonio nas proximidades do mesmo. Tínhamos, à parte das reunions com o professorado ou com o Patronato, conferências quase diárias. Abundava com umha chamada telefônica desde o meu gabinete para concertar calquer entrevista extraordinária. Dom Antônio personava-se no Centro assi que lhe era possível, e mantínhamos longuíssimas conversas, em que discutíamos com toda liberdade os problemas pendentes. A miúdo, depois de despachados os assuntos, prolongava-se a conversa informalmente, e filosofávamos um pouco sobre educaçom, sobre cultura galega, sobre persoas e instituiçons, sobre os mesmos temas familiares que nos preocupavam. Home de exquisita cortesia, modesto e singelo no seu trato, chegámos à força de luir os nossos cerebros mediante o contraste contínuo de opinions, a estimar-nos mutuamente e a ser verdadeiros amigos. El era, sob umha aparência reservada e correctamente impassivel, um sentimental, que por alto sentido da dignidade professava umha moral estóica, ao menos polo que se referia às suas exigências para consigo mesmo. Era tamém, no fundo, um home ingênuo, no sentido mais nobre da palavra, a quem, no encanto, os desenganos fixeram, numha dolorosa experiência, desconfiar da sinceridade e generosidade dos mais. Home de vida austera, quase ascética, pai de doze filhos aos que amou com amor afervorado, gastou somas elevadas de dinheiro e energia mental em servir à sua terra. A caridade, a filantropia -para que cada um recolha o termo que pertença ao seu vocabulário-, todas as formas da cultura tivérom nel, mais que um condescendente favorecedor, um servidor leal. Muito lhe deve o Museu de Lugo, construído polo grande arquitecto Gômez Romám, autor tamém do edifício do Colégio e da própria vivenda próxima do seu fundador.

Dom Antonio Fernández Lôpez era filho de Antom de Marcos, traficante em gado, que puxo os cimentos da fortuna familiar. Em Barreiros de Sárria, onde nacera o seu pai, fixo dom Antonio construir a sua residência de verao, ou umha delas, pois para que os seus filhos desfrutassem da praia dispunha tamem de umha casa no Pinhal de Bacelos, sobre a praia de Lourido, hoje chamada Praia América. Em Barreiros montou umha granja e umha Escola de especializaçom agropecuária que regêrom mestres tam entregues à sua profissom como dom Avelino Pousa e dom Valentim Árias. Ja dimitido do meu cargo em Fingoi, continuei sustendo estreitas relaçons com dom Antônio, que me visitou muitas vezes no meu Seminário da Universidade e me facilitava bolsas para estudantes e graduados. Um número mui crecido de licenciados e doutores por Compostela, boa parte dos cais som hoje professores em distintas Faculdades, fôrom bolseiros do Centro de Estudos Fingoi, que assi mesmo publicou livros como os Versos inhorados e esquecidos de Eduardo Pondal, o Cancioneiro de Pero Meogo e Contos populares da província de Lugo, que servirom de base a estudos importantes, como os recentes de Harry Meier sobre problemas de uso do galego.

Foi para mim um dia de profunda afliçom aquel em que tivem de trasladar­me precipitadamente a Lugo para dar­lhe o meu derradeiro adeus e assistir às honras fúnebres que se tríbutárom a um dos homes mais bons e mais autenticamente galegos que tenho conhecido.

De 1950 a 1970, desde que no Café Méndez Núnhez me apresentárom dom António Fernández até que O vim por derradeira vez, ja cadáver, na sua casa de Fingoi, o Lugo que conhecera na minha nenez adquirira umha fisionomia que pouco a pouco o transformara profundamente. A complicaçom burocrática multiplicara os altos postos de funcionários. Médicos distinguidos atingiam os primeiros renques da sociedade luguesa. Agora era a era dos engenheiros, dos cirurgiaos. Surgiam tamém grandes capitais burgueses. O comércio, a indústria criavam umha nova aristocracia. O mesmo Fernàndez Lôpez pertencia a este estamento social, e era engenheiro de caminhos, ainda que sempre foi persoalmente, mais que modesto, ascético, de umha singeleza franciscana. As velhas famílias de gineía fidalga, alheadas as suas terras, perderam toda importância, todo peso, na vida da capital. E ja nom eram os cônegos da catedral e os catedráticos do instituto as veneradas persoas que eu conhecera nos meus anos da nenez.

Cando em 1950 passei a viver em Lugo, primeiro em Sam Roque, logo no Bom Jesus, depois em Fingoi, ainda a cidade conservava parte do seu enlevo de pequena capital de província. Ainda a gente passeava sistematicamente no Cantom, na Alameda, na rua da Raínha. A tertúlia do Mêndez Núnhez reunia umha brilhante representaçom da intelectualidade lucense. O poeta Luis Pimentel, cantor da sua cidade natal, escuitava entre cordial e irónico os moços escritores ou pintores que compartiam as nossas horas. Entre eles estavam Constantino Grandio, hoje artista mui cotizado em Madrid, e Manuel Fernández Teixeiro, fertilissimo poeta. Figura destacadissima naquela polavilada era Celestino Fernández de la Vega, espírito mui agudo, mas filósofo tam avisado e crítico que nom fixo seguir nengum outro volume ao seu magnífico Segredo do humor. Anjo Fole, escritor boêmio, narrador mui estimado, possuidor de raros saberes, e, como Pimentel, figura luguesa característica, era tamém juiz distinguidissimo naquel areópago. O esculcador da saudade, Ramom Pinheiro, home de talento tam profundo como de rija fibra moral, foi tamem fraternal Contertúlio da pena. E, que home galego de letras nom passava por ali se passava por Lugo? Ali se escuitava a voz de Ramom Cabanilhas que chegava de Samos, e que departia com o denso poeta Anjo Joám ou com o hábil caricaturista Mouriz que nos tem duplicado a todos com o seu làpiz. Álvaro Gil, um dos fundadores, com Pimentel, Bal e Correa Calderom, da revista Ronsel, amigo de todos os citados, nom deixava tampouco nunca de visitar a pena cando a sua saudade de luguês o traia ao recinto amuralhado. E todos temos escuitado naquelas mesas as últimas confidências de Faustino Santalices sobre a arte de tanger a sanfona.

Muitos destes paisanos e amigos, como Pimentel, Anjo Joám, Cabanilhas, Santalices nom som ja deste mundo. Deles e outros muitos, dos lentos solpores na muralha, das mestas névoas do Minho, do arrecendo do polvo na Mosqueira, do correcans nas procissons, das feiras de gado do Sam Froilám, do domingo das moças, de figuras relevantes da vida social, como dom Francisco Vázquez Saco, catalogador das igrejas da província; dom Manuel Vázquez Seixas, estudioso das fortalezas; dom José Trapero Pardo, que acunhou nas suas crônicas jornalísticas o tipo popular de Pelúdez; do forte sabor dos invernos gelados e os frescos veraos no Parque de Rosalia de Castro; dos problemas do urbanismo; das relaçons da capital com o seu entorno, de ¡tantas cousas! teríamos podido departir, de luguês a lugueses, durante ¡tanto tempo!

Mas a conversa ha de rematar. Vós e mais eu compartimos a saudade da acrópole que se assoma ao Minho polas costas do Parque. Nom quero alimentá-la mais com lembranças gozosas e dolorosas. Aqui se pom fim a esta conversa sobre Lugo que temos sustido entre lugueses; e como onde estam os lugueses está Lugo, temos falado em Lugo sobre Lugo, e a plática tem sido um monólogo doméstico e familiar.